Como o processo de sonegação da Globo sumiu da Receita Federal e
sobreviveu no mundo do crime.
Por Joaquim de Carvalho
Publicado
por
-
15 de setembro de 2018
No dia 2 de julho de
2013, um grupo de blogueiros, com o Centro de Estudos de Mídia Alternativa
Barão de Itararé e o Mega Cidadania à frente, foi ao Ministério Público Federal
no Rio de Janeiro e entregou uma representação com 25 páginas do processo da
Receita Federal em que os donos da TV Globo são responsabilizados pela prática
de crime contra a ordem tributária.
O procurador recebeu
os documentos e encaminhou para a Polícia Federal, que abriu inquérito. “Tinha
grande esperança de que o crime fosse, finalmente, apurado, em razão da
independência do Ministério Público”, diz Alexandre César Costa Teixeira, autor
do blog Mega Cidadania.
No último 7 de
outubro, dois dias depois do primeiro turno das eleições, o inquérito foi
arquivado, por decisão do delegado Luiz Menezes, da Delegacia Fazendária da
Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro. A decisão teve endosso
do Ministério Público e foi acatada pela 8ª Vara Federal Criminal do Estado.
“A frustração é muito
grande. Eu me empenhei muito para que esse caso não ficasse impune”, disse
Alexandre, ao saber que a representação dele e de seus amigos acabou no arquivo
da Justiça Federal.
“Eles não chamaram
nenhum de nós para depor, mesmo sabendo que fomos nós que conseguimos as
páginas do processo que havia desaparecido da Receita. É um absurdo”, afirma.
“O sentimento é de indignação”, diz ele, que já foi funcionário do Banco do
Brasil e do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.
Alexandre faz parte
de uma rede que atuou na internet, em junho do ano passado, para fortalecer as
manifestações de rua. Foi ele quem entregou a Miguel do Rosário, do site O
Cafezinho, os documentos que incriminavam a Globo, o que provocou, em julho de
2013, uma manifestação em frente à porta da Globo, na rua Von Martius, Jardim
Botânico, em que foram distribuídos adesivos com a frase “Sonegação é a maior
corrupção”.
O processo
desapareceu da Receita Federal no dia 2 de janeiro de 2007, quando já estava
separado para que uma cópia fosse encaminhada ao Ministério Público Federal,
com uma representação para fins penais, em que Roberto Irineu Marinho, João
Roberto Marinho e José Roberto Marinho são apontados como responsáveis por
crimes contra a ordem tributária.
Uma investigação da
Receita Federal apontou a agente administrativa Cristina Maris Meinick Ribeiro
como responsável pelo sumiço. A prova mais forte contra ela é um vídeo que
registra a entrada e a saída da Delegacia da Receita Federal.
Na entrada, Cristina
Maris aparece com uma bolsa. Na saída, além da bolsa, ela tem uma sacola, onde,
segundo testemunhas, estavam as três pastas do processo.
Seis meses depois do
crime, a agente administrativa acabou presa, a pedido do Ministério Público
Federal, mas ficou apenas dois meses e meio atrás das grades.
Sua defesa, formada
por cinco advogados, conseguiu no Supremo Tribunal Federal um habeas corpus,
numa decisão em que o relator foi o ministro Gilmar Mendes.
Em janeiro de 2013,
Cristina Maris foi condenada a 4 anos e onze meses de prisão. O juiz que assina
a sentença escreveu que Cristina agiu “com o evidente propósito de obstar o
desdobramento da ação fiscal que nele se desenvolvia, cujo montante
ultrapassava 600 milhões de reais.”
No mesmo processo em
que foi condenada por ajudar a Globo, Cristina Maris respondeu à acusação de
interferir no sistema de informática da Receita Federal para dificultar a
cobrança de impostos de outras três empresas.
Cristina Maris vive
hoje num apartamento da avenida Atlântica, esquina com a rua Hilário de
Gouveia, em Copacabana, mas não dá entrevista. Informado de que eu gostaria de
conversar com ela, o porteiro acionou o interfone e, depois de falar com
alguém, disse que ela não estava.
O processo da Receita
Federal permaneceu desaparecido até que Alexandre conseguiu com um amigo cópia
de 25 páginas do processo e as entregou para Miguel do Rosário, que publicou em
O Cafezinho.
Eu fui apresentado ao
amigo de Alexandre em um apartamento no centro da cidade. Sob condição de não
ter seu nome revelado, ele me levou, no dia seguinte, a uma casa no subúrbio
carioca, e ali telefonou para outra pessoa, a quem pediu para trazer “a bomba”.
Não eram apenas 25
páginas, mas o processo inteiro, original.
Meia hora depois,
chegaram dois homens, um deles com uma mochila preta nas cotas.
Os documentos são
originais, inclusive os ofícios da TV Globo, em papel timbrado, em que a
empresa, questionada, entrega os documentos exigidos pela Receita Federal.
Alguns desses
documentos são os contratos em que a Globo, segundo o auditor fiscal Alberto
Sodré Zile, simula operações de crédito e débito com empresas abertas no
Uruguai, Ilha da Madeira, Antilhas Holandesas, Holanda e Ilhas Virgens
Britânica, a maior parte delas paraísos fiscais.
Esses contratos, que
o auditor Zile classifica como fraude, têm a assinatura de Roberto Irineu
Marinho e de João Roberto Marinho. TV Globo, Power, Porto Esperança, Globinter,
Globo Overseas são algumas das empresas que fazem negócios entre si para, ao
final, adquirir uma empresa nas Ilhas Virgens Britânicas, a Empire, que tinha
como sede uma caixa postal compartilhada com Ernst & Young Trust
Corporation e detinha os direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002.
Analisada
superficialmente, a papelada indica que a Globo tem uma intensa atividade
internacional, e está em busca de novos espaços no exterior. Vistos com lupa,
como fez o auditor da Receita Federal, esses documentos mostram que tudo não
passou de simulação.
As empresas são todas
controladas pela família Marinho e os contratos são de mentirinha. No fundo, o
que a Globo busca é se livrar do imposto de renda que deveria ser pago na
fonte, ao comprar os direitos de transmissão da Copa do Mundo.
O amigo de Alexandre
esclarece que os dois homens que guardam a bomba não pertencem à quadrilha que
faz desaparecer processos das repartições públicas do Rio de Janeiro, a qual a
ex-funcionária da Receita Federal Cristina Maris prestou serviço.
Os processos
estiveram em poder da quadrilha até que o amigo de Alexandre conseguiu
resgatá-lo da única maneira que se negocia com bandidos: pagando o preço do
resgate. Ele não diz o valor.
Alexandre recebeu os
originais e quis entregá-los à Polícia Federal num fim de semana. Mas, ao saber
que se tratava do inquérito da Globo, o delegado de plantão teria se recusado a
ficar com os documentos.
Alexandre decidiu
então esperar ser chamado para depor, oportunidade em que entregaria uma cópia
do processo ou mesmo o original, caso o delegado quisesse. Mas a intimação que
ele esperava receber nunca chegou.
“Dizem que o processo
da Receita Federal foi remontado, com cópias fornecidas pela Globo. Seria
interessante comparar o original com esse processo remontado, se é que foi
remontado”, afirma.
Na sexta-feira da
semana passada, eu procurei o delegado encarregado do inquérito, Luiz Menezes.
Quando perguntei do
inquérito, ele disse: “Esse inquérito já foi relatado e foi para a justiça
federal.” Quando perguntei sobre a conclusão dele, respondeu: “Arquivo”. Por
quê? “A Globo apresentou o DARF de recolhimento do imposto.” O senhor se lembra
de quanto era o DARF? “Não”.
Na 8ª Vara Federal
Criminal do Rio de Janeiro, a informação que obtive é que, no dia 7 de outubro,
o processo deixou existir, tomando o caminho do arquivo, como sugerido pelo
delegado, com a anuência do Ministério Público Federal.
Sobre a hipótese de
ter havido crime de lavagem de dinheiro, cuja punibilidade não é extinta mesmo
com o pagamento de imposto atrasado, o delegado Luiz Menezes não quis falar.
Por que um processo
que desapareceu dos escaninhos da Receita Federal em janeiro de 2007,
beneficiando a TV Globo, sobreviveu no submundo do crime?
Segundo o amigo de
Alexandre, a situação saiu do controle da Globo quando o processo caiu nas mãos
de um homem que tentou extorquir dinheiro da empresa.
“A Globo pagou para
fazer desaparecer o processo da Receita e teria que pagar de novo”, diz.
Aqui entra uma versão
em que é difícil separar a lenda da verdade.
Com a ajuda de um
aparato policial amigo, a Globo teria tentado retomar os documentos à força,
mas a operação falhou, e o processo continuou no submundo até que foi trazido à
luz pela militância na internet.
Hoje, mesmo contendo
informações de teor explosivo, as autoridades querem distância do processo.
“A Globo é blindada.
Nós tentamos chamar a atenção para o problema, mas ninguém se dispõe a ouvir”,
diz Alexandre.
Na época da Copa,
Alexandre procurou as empresas de outdoor do Rio de Janeiro, para divulgar um
anúncio em que informa da existência do processo e pede a apuração.
A campanha era
assinada pelos blogueiros, mas nenhuma empresa de outdoor aceitou abrigar a
mensagem.
Enquanto órgãos
oficiais não investigam o caso, o processo da Receita Federal que envolve a
Globo continuará sendo transportado em mochilas no subúrbio do Rio de Janeiro. (Transcrito).